sexta-feira, dezembro 26, 2008

Amar simplesmente o efémero

Para uma leitura da obra Do Intangível, de Pompeu Miguel Martins
por César Freitas
Desde tempos imemoriais, o Homem alimenta uma exigência de plenitude que esbarra nas dolorosas fronteiras entre a vida e a morte, entre a existência corpórea e a transcendência.
Enquanto “ser-no-mundo” e “ser-para-a-morte”, como o definiu Heidegger, o ser humano é determinado pela consciência do carácter fugaz da vida, geradora de uma inquietação, em certa medida narcísica, por temer previamente a sua finitude e por antecipar a despedida do outro.
Tema que se instituiu ao longo da história da literatura como problemática essencial, areflexão acerca da passagem inexorável do tempo e da fragilidade da existência humana reencaminha-nos necessariamente para as Odes do poeta latino Horácio, divulgador de uma sabedoria de vida que se alicerça na urgência de viver o momento presente, “carpe diem”, e numa atitude de renúncia a todos os excessos, preceituando a “aurea mediocritas”, um ideal de vida de equilíbrio e serenidade. Mas porque o conhecimento literário não se pode apartar da história das ideias – e porque a exploração do tópico da “vita brevis” se pode respigar em
infindáveis exercícios de intertextualidade, constituindo uma imagem simbólica que se reactualiza de forma ininterrupta na mente humana, segundo a teoria da memória social ou colectiva, de Aby Warburg –, relembre-se apenas que a meditação em torno da brevidade da vida e da labilidade do tempo se institui, desde logo, como linha temática essencial no texto bíblico. Por outro lado, restringindo-nos ao universo da poesia portuguesa, e indicando apenas alguns dos nomes que participaram nesta contínua recriação poética dos ideais horacianos, recordemos os magistrais versos clássicos de Camões, António Ferreira ou Sá de Miranda, até chegar ao heterónimo pessoano Ricardo Reis ou à poética de Eugénio de Andrade, vozes que, neste quadro, não podem deixar de ser convocadas para a leitura DoIntangível.
Mas porque de tempo e de brevidade falamos, e porque, como é consabido, tempus fugit, ainda que concordemos com a asserção de Eduardo Lourenço de que “Em sentido radicalnão há nada a dizer de um poema, pois é ele mesmo o dizer supremo” (Tempo e Poesia), iniciemos o nosso percurso de leitura por esta peregrinação interior de Pompeu Miguel Martins, apreciemos a sua sensibilidade estética e consideremos as principais linhas temáticas que concorrem para a definição desta poesia filosófica ou filosofia poética.
***
Numa aguda reflexão sobre a essência da realidade do Homem – assim derrogando uma prática comum de evitar a meditação em torno da morte e do esquecimento, porque dolorosa e de difícil expressão – o poeta recupera o tempo passado numa intersecção com o presente, revisitando espaços, tanto públicos como pessoais, ambos habitados por vivas memórias, num desejo de compreender a existência e o sentido de uma entidade transcendente que a todos domina.
Partindo de uma leitura de «Neve no Rio», do poeta chinês Liu Zongyuan, poema de forte pendor imagístico que serve de epígrafe a esta obra, Pompeu Martins apropria-se de imagens e de símbolos que serão utilizados tanto na nomeação das quatro partes desta obra como na definição dos seus pólos temáticos essenciais.
Do Intangível consubstancia uma sondagem interior através de afectuosas memórias de espaços e de objectos que evocam aqueles que partiram. A primeira parte, intitulada «Das colinas e veredas», confronta o leitor com um conjunto de espaços públicos, exteriores, revisitados no presente pela força das recordações que se apoderam do sujeito poético.
Num cruzamento do espaço com o tempo, o real observado surge transfigurado pela comoção que se associa à memória – “o único viajante eterno”, no dizer poético («O cais», 20). É assim que, num regresso imaginativo a um «Jardim» (16) antes frequentado, o sujeito poético constata a “despedida absoluta”e o “tempo que foi roubado/ aos dias longos”, não podendo mais reclamar um “genuíno e louco desconhecimento/ da finitude” que lhe permita ambicionar “um corpo inteiro e lendário”. São, de resto, múltiplas as referências metafóricas ao inevitável envelhecimento do corpo. No poema «As ruas» (19), num interessante processo de transferência de significações entre a cidade e o corpo, a perecibilidade corporal é figurada na perda do desejo e no esbatimento das emoções, conservando o sujeito apenas nos olhos alguma reminiscência da energia vital.
Nos diferentes espaços percorridos pelo seu olhar retrospectivo, o poeta, fatalmente destinado a “desaparecer do olhar dos outros”, denuncia amarguradamente uma “cadência de desaparecimento” («O velho prédio», 18), que se traduz na privação da avó e das histórias ouvidas num «Banco de jardim» (27) e na separação definitiva da “voz lenta do avô”, sentida em «Quintal» (28), poema que concilia uma sentida representação da perda do Outro com um expressivo trabalho poético das palavras:
No quintal, a velha pereira
guardou, até ao último dia,
toda a luz de que tinha memória.
Não me recordo de a olhar
uma última vez
quando deixámos a casa,
nem de lhe entregar a lenta voz do avô,
ou a sombra de agosto
onde esperava a liberdade
incompreendida e vasta.
Arrancaram a velha árvore e a casa já não
existe.
Tudo desaparece em gestos simples
e é da simplicidade que vivemos,
como eu da velha pereira, da sua sombra,
da voz do avô que tão bem guardava
e que me foi arrancada, dizem os outros,
pelo tempo.

Repare-se que, num poema que actualiza o tema da transitoriedade humana, o sujeito poético se apresenta desenraizado pelo vazio, pela inexistência do abrigo proporcionado pela árvore e pela casa, elementos simbólicos que, ainda que temporariamente, perpetuaram a memória do avô e da sua voz, apagada pela força destrutiva do tempo.
Na verdade, estamos perante uma poética do sentir, contrapondo-se o estado de
desencanto e saudade no presente da enunciação a uma “sensação quase metafísica” vivida pelo sujeito num tempo transcorrido, um tempo em que o poeta se acreditava “Um deus jovem com a fé toda em tudo/ como só aos deuses é permitido/ ou à inocência humana” («A esplanada», 21).
Neste percurso de autognose, recuperando pelos sentidos corporais memórias de lugares e das pessoas que neles habitaram, devemos pensar a categoria do espaço enquanto “topologia filosófica” ou “topologia do irreal”, na terminologia de Giorgio Agamben (Estancias. La palabra y el fantasma en la cultura occidental), isto é, perspectivar os lugares físicos não como simples referências espaciais, mas antes construções psicológicas ou mesmo metafísicas. À luz desta percepção filosófica do espaço, compreende-se o desejo de possuir «A casa nova», metáfora de vida, de liberdade e de felicidade: “Queríamos uma casa de onde se visse o rio./ Uma casa de onde o olhar partisse/ e regressasse apenas quando o vento/ erguesse no rosto a absoluta urgência/ de um cais para a felicidade” (17).

O poeta prossegue o seu caminho de indagação com a imagem simbólica «Do voo de ave», percorrendo agora espaços intangíveis, ocupados por valores e sonhos humanos.
Aprisionado neste fluir do tempo que se materializa num jogo de sombra e luz, por constatar que mesmo no seu nascimento “já não era livre” e por compreender agora “a noção do que em vida/ é o infinito”, o sujeito poético procura libertar-se das contingências corpóreas pela identificação com a ave, qual figura de Ícaro, procurando restabelecer a “liberdade eterna”, a harmonia e o equilíbrio interior pressentidos apenas na luz e no leite materno do seu «Voo nascente» (34).
Dentro de um processo de construção de sentido global que se abre a isotopias temáticas diversas, o poeta vale-se de uma sucessiva reiteração lexical e de uma recorrência de imagens e símbolos, sintetizados nos títulos dos poemas, para representar este anseio de sublimação pessoal, a renovação de uma «Memória da liberdade» (45), significada na brevidade das «Flores» (36) e no corpo do vento, elementos naturais que permitem definir o amor, necessariamente breve, livre, luminoso e sublime: “Um nome para chamar o infinito. É isso o amor.” («O nome», 37).
Esta é, com efeito, uma poesia de amor e de separação, figurada na memória que reconstitui a vida de espaços, pessoas e objectos e “o amor que lhes dispensámos” («O vinho», 51), numa estruturação dual: perante a figuração da efemeridade da vida nos «Pássaros diários» (39), contrapõe-se a esperança e o desejo de liberdade que radica na força do corpo e na aspiração humana de voar, de se desembaraçar das “regras do tempo” e da presença opressora da figura de «Deus» (43), entidade em simultâneo responsável pelo amor e pela sua privação, origem tanto da fé como da descrença: “A mão de deus cobre o rosto/ que não tive e, levemente,/ acaricia todo o amor que senti/ e me foi vedado. // É essa a liberdade/ da fé, mas também a da descrença.” Assim se compreende que, na sequência da não-aceitação dos desígnios de uma providência divina incerta, o poeta evoque «Os resistentes» que mantêm acesa a “inquietação/ mais limpa”, a busca pelos “dias claros” que sobrelevem os momentos de sofrimento. É também
com este propósito de libertação que o sujeito poético se prefigura num «Pássaro breve» (35) que faz da sua voz um instrumento de liberdade e pela “extensão do olhar” alcança a revelação do sobrenatural que o distingue dos seres marcados pela “estreiteza do peito”. E porque detém “a possibilidade única de habitar/ esse coração de pássaro”, o poeta exorta «O Homem» (44) a comungar deste desejo de ascensão, a ousar empreender esta viagem redentora: “Sai da varanda do mundo/ e cria asas (…)/ para o longo voo, / para a mais digna despedida”.

«Da barca solitária», terceira degrau para ascender ao intangível, reflecte sobre o espaço íntimo do poeta, do seu fazer poético e da condição solitária do artista que, pela palavra, busca um sentido para a sua existência. Concedendo uma particular atenção ao real mais contíguo, o poeta move a sua barca literária recorrendo ao “princípio da beleza” que descobriu num «Quadro» (50) habitado por ele quase toda a vida – numa relação de intertextualidade entre poesia e pintura, a que se liga também a musicalidade presente na harmonia dos seus versos, que concorre significativamente para a definição da voz poética de Pompeu Martins.
Nesta “arca de intimidades” e de emoções ateadas pela rememoração de objectos, de espaços e de momentos de convivência como «O chá» ou «A mesa de jantar», o poeta, revelando uma aguda consciência do vazio e da lenta intromissão da morte que se manifesta “pelo que há na vida, não de igual,/ mas de repetido” («O carro», 54), deixa transparecer um sentimento de nostalgia pela ausência dos abraços e das gargalhadas, dos aromas e dos sonhos da infância.
Mas se de uma «barca solitária» falamos, devemos conduzir a nossa navegação interpretativa para as composições metapoéticas, isto é, para as reflexões acerca dos próprios processos de criação literária. Com efeito, ainda que a matéria poética seja colhida em realidades que se entrelaçam no espaço da memória, esta poesia do olhar esconde-se por trás de uma «Janela» (60), do frio do vidro que sugere a incomunicabilidade entre o poeta e “alguém de fora/ [que] o soubesse ou pudesse sentir, /alguma vez”. Leia-se, a este propósito, o poema «A secretária» (56), metatexto que equaciona o acto de configuração do poema: nele o poeta deposita sob forma de predestinação “o olhar mais virgem,/ a emoção primeira,/ a palavra contida”, à espera da “alma alheia e rente,/ não de quem lê, mas de quem é/ quando o lê”, aproximando-se das palavras de Eugénio de Andrade que afirmou a necessidade de que o poeta “deixe de ser para que o poema seja e dure” (Rosto Precário). Noutro exemplo, partindo da observação comum d’«Os peixes» (78) num aquário, enuncia-se uma arte poética que se estrutura em analogias, símbolos e imagens sugestivas. Partindo da angústia dos sonhos desfeitos e do vazio da “saudade mais limpa”, o poeta desvenda-nos sinteticamente o seu fazer poético, conjugação do silêncio com a reflexão: “Silencio e aprofundo,/ seguindo livremente a rota indefinida/ da vez seguinte a cada verso,/ como um remorso, uma missão, uma saudade.”
Eis que chegamos à última etapa do itinerário traçado pelo poeta, desaguando nas margens «Do rio gelado», um espaço universal que compreende a vida humana com os seus anseios e os seus desalentos, um espaço matizado pela impossibilidade de recuperar a materialidade corpórea daqueles que perduram apenas pelo “encantamento,/ até que se torne estranho e imperceptível/ à imprevista dimensão da memória.” («O tempo», 70). É pois neste rio que “avança a voz/ de quem se despede”, é nele que “pronunciamos a partida interior” («O rio»,
71), da mesma forma que n’«O céu aberto» (72) se percebe a inscrição do carácter “efémero da vida” e se antevê uma “profunda despedida”.
Abre-se neste ponto uma dimensão de verticalidade que liga a terra e o céu e orienta o sujeito poético na busca do intangível, seja pelas “chuvas” que fazem o chão espelhar o céu, seja pela “montanha” incessantemente procurada pelo olhar em busca de uma luz eterna e pura, seja pelo “mar” que proporciona ao sujeito o “infinito”, as “esperanças”, a “beleza e inquietude” que o levam a confessar: “Foi disso o meu corpo. Desse invisível./ Foi aí que toda a vida me levantei.”
Chegamos pois ao fim deste movimento de introspecção do sujeito poético, mentalmente amadurecido, a ponto de aceitar serenamente “o inevitável envelhecimento,/ fruto da resignação que não anunciara/ a tenra idade.” («Os campos, 73). Admitindo lucidamente a brevidade da vida, o poeta afeiçoa-se agora a tudo que é efémero, preceituando o tópico horaciano do “carpe diem” que se traduz na oferta simbólica de uma flor dirigida ao coração humano: “Toma uma flor.// Sossega nos socalcos da pele/ o rumor da terra./ Espera-a. Vai morrendo./ Nada mais tranquilo te posso desejar/ para os dias.” («A última flor»).

Escreveu Baudelaire, a propósito de E. A. Poe, que “quem não sabe captar o intangível não é poeta” (Notes nouvelles sur Edgar Poe). Pois bem, nesta obra, Pompeu Miguel Martins comprovando uma vez mais a sua fina capacidade de observação do real, seja tangível ou intangível, oferece-nos uma livre e original recriação poética da experiência humana que resiste a um mero exercício de decifração e a uma prática de leitura que deseje apenas a fruição de um sentido estético. Numa linguagem simultaneamente breve e aberta a múltiplas significações, profusamente imagética, alimentada por metáforas, símbolos e de inebriantes sinestesias, Do Intangível responde à ininterrupta busca do “espanto das coisas” que nos faz viver neste mundo dos livros.
César Freitas

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